quinta-feira, 24 de julho de 2008

Rascunho

É de se estranhar que à primeira linha encontremos Laura, a heroína de nossa estória, completamente extasiada - ou deveria dizer ecstasiada -, deitada de costas, os braços abertos, as pernas para fora da cama, a pele lívida, os cabelos em desalinho. Tem os olhos empedernidos em estranhas pálpebras arroxeadas, fixos num mundo que trespassa o teto sujo em forro de madeira. Os punhos semicerrados denunciam a recente esquizofrenia que lhe furtara o último suspiro. Abaixo da axila direita, um discman toca Guns 'n Roses. À cabeceira, um livro de auto-ajuda aberto ao meio exibe uma tira de papel almaço, certamente usado como marcador de página, cheio de anotações. Descubra-se não teria sido decerto um best-seller, mas do gênero, foi o que mais lhe chamou a atenção em seus corriqueiros passeios pelos sebos da Sé. Atravessava um momento delicado em sua vida, para não dizer tenso, ou conturbado, e dir-se-ia que as anotações da tira de papel bem declaram o conflito em seu mundo interior. A um ou dois passos, no máximo, da cama, acha-se a Bíblia, também aberta, sobre a mesinha de telefone. Uma bíblia ilustrada, cuja ilustração em que se acha aberta a página é a de um centurião em rogo de misericórdia, de joelhos numa pedra, as duas mãos apoiadas na espada estacada, a cabeça erguida aos céus em olhar súplice. E ao lado da Bíblia, um copo d'água pela metade. A luminosidade externa, adentrando pela veneziana de madeira entreaberta, esmaece em contraste com o interior soturno, e o ruído desarmônico da rua parece arranhar a sinfonia sibilada de Paradise City.
O corpo seminu, em sua perfeita forma de mulher, exibe a espaços marcas de cigarro e avermelhidões. Os seios, insinuando-se para fora do sutiã, estão arroxeados como as pálpebras. As marcas de cigarro estendem-se ao longo do tronco e a púbis com avermelhidão característica de sangue coalhado denuncia algum tipo de violência sexual. As pernas longas e torneadas, estendidas para fora da cama, estão intactas, cobertas até à altura dos joelhos por uma toalha branca, manchada de sangue, estendida até à altura da púbis. Seu olhar teso parece súplice, a expressão genuína de um desejo sufocado pela alucinação inconsciente. Seus lábios retesados num ricto de espasmo melhor definem a agonia em que se fiara.
Mas não conheçamos assim, logo à primeira linha, nossa heroína. Isto que se lê é o desenlace, pois o início de tudo está ainda por vir, a fim de a conhecermos melhor e entender o porquê do trágico fim.


Stargate

Examinei sobre a palma de minha mão esquerda um livro de capa preta, cujo título em grafite deu-me um calafrio a percorrer toda a espinha: RASALOM. Desviei os olhos assustados para a direita, na direção de uma porta de madeira de quase três metros de altura, quase à altura das colunas grossas que se intercalavam em ziguezague pela ampla sala de chão batido, esburacado. Ele não tardaria a entrar por aquela porta, quando escurecesse, e eu precisaria me proteger o quanto antes. À minha frente, uma mesa de pedra seria a cama onde eu deveria deitar-me. Mas eu não sabia por que teria de deitar-me nela. Seria minha lápide, mas eu não me deixaria morrer, apesar da ameaça e do medo a percorrer-me a espinha com a frieza da morte.
Do interior escuro de entre duas colunas surgiu de repente uma mulher, em trajes campestres típicos do século XVII, rechonchuda e de cenho cerrado, trazendo-me um lençol branco e uma calça cheia de remendos. A mulher parou à minha frente e estendeu-me os panos, olhando-me com a seriedade espantosa de quem prevê o pior. Parecia, porém, mais segura do que eu. E foi o que demonstrou quando ordenou que eu trocasse as calças e deitasse-me na pedra. Depois disso não a vi mais e já estava deitado na lápide fria, coberto até a cabeça pelo lençol branco através do qual eu nada via, embora pudesse sentir perfeitamente a aproximação de qualquer corpo estranho. Meus olhos mexiam-se com pavor e eu sentia as pálpebras roçarem rigidamente o tecido branco. Súbito, ouvi instintivamente o trote ligeiro de um cavalo que fazia estremecer todo o chão, e vi que era um animal de um pêlo negro e luzidio, vociferando, de olhar lancinante em minha direção. Eu via nitidamente esvoaçar a capa igualmente negra do cavaleiro que açulava o quadrúpede. (continua)

Um comentário:

Unknown disse...

...Indiscutívelmente é a discrição mais realística de uma mulher indecisa, insegura e ao mesmo tempo sonhadora. Não haveria outro que não fosse VOCÊ (Autor) a descrever de uma maneira tão perfeita essa cena, fazendo com que imaginemos o ambiente em que a personagem se encontra. Você como sempre, é digno de todos os meus elogios.
Que O Santíssimo Deus ilumine Você sempre, e que dê muitas "asas" à sua imaginação, por muitos e muitos anos.
Parabéns!